quarta-feira, 24 de junho de 2009

Ainda os filósofos




Expressar a experiência real em palavras é um desafio temível até para grandes escritores. Tão séria é essa dificuldade que para vencê-la foi preciso inventar toda uma gama de gêneros literários, dos quais cada um suprime partes da experiência para realçar as partes restantes. Se, por exemplo, você é Balzac ou Dostoiévski, você encadeia os fatos em ordem narrativa, mas, para que a narrativa seja legível, tem de abdicar dos recursos poéticos que permitiriam expressar toda a riqueza e confusão dos sentimentos envolvidos. Se, em contrapartida, você é Arthur Rimbaud ou Giuseppe Ungaretti, pode comprimir essa riqueza nuns poucos versos, mas eles não terão a inteligibilidade imediata da narrativa.

Essas observações bastam para mostrar que as idéias e crenças surgidas nas discussões públicas e privadas raramente se formam da experiência, pelo menos da experiência pessoal direta. Elas vêm de esquemas verbais prontos, recebidos do ambiente cultural, e formam, em cima da experiência pessoal, um condensado de frases feitas bastante desligado da vida. Se vocês lerem com atenção os diálogos socráticos, verão que a principal ocupação do fundador da tradição filosófica ocidental era dissolver esses compactados verbais, forçando seus interlocutores a raciocinar desde a experiência real, isto é, a falar daquilo que conheciam em vez de repetir o que tinham ouvido dizer. O problema é que, se você repete uma ou duas vezes aquilo que ouviu dizer, não apenas você passa a considerá-lo seu, mas se identifica e se apega àquele fetiche verbal como se fosse um tesouro, uma tábua de salvação ou o símbolo sacrossanto de uma verdade divina.

Para piorar as coisas, as frases feitas vêm muito bem feitas, em linguagem culta e prestigiosa, ao passo que a experiência pessoal, pelas dificuldades acima apontadas, mal consegue se expressar num tatibitate grosseiro e pueril. Há nisso um motivo dos mais sérios para que as pessoas prefiram antes falar elegantemente do que ignoram do que expor-se ao vexame de dizer com palavras ingênuas aquilo que sabem. Um dos resultados dessa hipocrisia quase obrigatória é que, de tanto alimentar-se de símbolos verbais sem substância de vida, a inteligência acaba por descrer de si mesma em segredo ou mesmo por proclamar abertamente a impossibilidade de conhecer a verdade. Como essa impossibilidade, por sua vez, é também um símbolo prestigioso nos dias que correm, ela serve de último e invencível pretexto para a fuga à única atividade mental frutífera, que é a busca da verdade na experiência real.

A própria palavra “experiência” já costuma vir carregada de uma nuance enganosa, pois se refere em geral a “fatos científicos” recortados a partir de métodos convencionais, que encobrem e acabam por substituir a experiência pessoal direta. Nessas condições, a discussão pública ou privada torna-se uma troca de estereótipos nos quais, no fundo, nenhum dos participantes acredita. É esse o sentido da expressão popular “conversa fiada”: o falante compra fiado a atenção dos outros – ou a sua própria – e não paga com palavras substantivas o tempo despendido. (Sempre achei uma injustiça que as leis punissem os delitos pecuniários, mas não o roubo de tempo. O dinheiro perdido pode-se ganhar de novo – o tempo, jamais.)

De Sócrates até hoje, a filosofia desenvolveu uma infinidade de técnicas para furar o balão da conversa estereotipada e trazer os dialogantes de volta à realidade. Zu den Sachen selbst – “ir às coisas mesmas” –, a divisa do grande Edmund Husserl, permanece a mensagem mais urgente da filosofia depois de vinte e quatro séculos. Ninguém mais que o próprio Husserl esteve consciente dos obstáculos lingüísticos e psicológicos que se opunham à realização do seu apelo. Todo o vocabulário técnico da filosofia – e o de Husserl é dos mais pesados – não se destina senão a abrir um caminho de volta desde as ilusões da classe letrada até à experiência efetiva. A conquista desse vocabulário pode ser ela própria uma dificuldade temível, mas decerto não tão temível quanto os riscos de ficar discutindo palavras vazias enquanto o mundo desaba à nossa volta. Ao incorporar-se à cultura ambiente como atividade academicamente respeitável, a própria filosofia tende a perder sua força originária de atividade esclarecedora e a tornar-se mais uma pedra no muro de artificialismos que se ergue entre pensamento e realidade.

Por Olavo de Carvalho, filósofo.

Fonte: Diário do Comércio, 27 de maio de 2009.

Um comentário:

  1. Um artigo muito interessante, Rafael. Bastante reflexivo e, diria até, elucidativo.
    Me fez pensar bastante sobre as "frases feitas", bem como sobra as "verdades de outros" que acabamos por tomar como nossas no dia-a-dia.
    Me lembrou também de algumas de suas aulas de Filosofia do Direito.

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